sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

RESENHA LITERÁRIA DO ACADÊMICO DA BAHIA, DÉCIO TORRES*, SOBRE LIVRO DE IVAN MARINHO


  “Sortilégio possível” é o título deste belo livro de poemas e pinturas do alagoano/pernambucano Ivan Marinho De Barros Filho, esse duplo artista poeta/pintor que nos presenteia com seus admiráveis trabalhos de pintura e poesia. Difícil saber se os poemas são ilustrados ou se são as pinturas que foram poetizadas neste jogo de intertextualidade artística que nos lembra o poeta londrino William Blake (1757–1827) e seus poemas ilustrados ou os quadros “poemados” de suas visões no período romântico inglês.

Aqui encontramos lindos trabalhos que mesclam as artes pictórica e literária numa elegia da intertextualidade das artes sem fronteiras. Enquanto a poesia ganha tema sob a forma de palavra, as palavras também encontram sua forma poética na pintura de constelações que nos lembram, ao mesmo tempo: mandalas, pinturas rupestres, cirandas e brincadeiras de roda do Nordeste, as bandeiras de Jasper Johns, as bandeirolas de Volpi, o expressionismo abstrato de Jackson Pollock, os girassóis e as cores de Van Gogh (pintores que são homenageados em dedicatórias e títulos de poemas e nas alusões técnicas e temáticas pictóricas), os aribés, urupembas e outros utensílios domésticos e objetos artesanais da nossa cultura indígena, assim como diversos outros elementos das tradições folclóricas dos caboclos sertanejos e dos nossos povos originários.

Os poemas abordam diversos temas, desde a arte poética, escritores (famosos ou não) e seus personagens e livros, pessoas comuns, jogos infantis e tantos "fragmentos do acaso" que se diluem em poesia. A leitura se torna um divertido jogo de descobertas do lirismo que permeia esses acasos que nos cercam diariamente.

Além de poeta, Ivan Marinho de Barros Filho é artista plástico, escritor e professor das redes públicas estadual e municipal do Cabo de Santo Agostinho, PE.

Membro da Academia Cabense de Letras, foi agraciado com diversos prêmios e com o Título de Notório Saber em Cultura Popular pela Universidade de Pernambuco. Importante produtor e incentivador da cultura popular, trabalha há anos na preservação da memória cultural e do Patrimônio Vivo de Pernambuco.

Lançado em 2014 pela Editora Bagaço, o livro está dividido em três partes (denominadas Metades) e é um verdadeiro deleite para os olhos e para a alma. O texto da orelha foi escrito por Olímpio Ronald Neto, com apresentação de Mário Hélio e prefácio de João Carlos Taveira. O texto da quarta capa é do escritor alagoano/brasiliense Daniel Barros, irmão do autor, de quem tive o privilégio de receber um exemplar. O livro pode ser encontrado com o autor, através de suas redes sociais.

*Décio Torres, membro da Academia de Letras da Bahia, é crítico literário, poeta, professor e pesquisador da UFBA e da UNEB, Ph.D. em Literatura Comparada na State University of New York em Buffalo, EUA. Mestre em Teoria da Literatura, especialista em Tradução e bacharel em Letras/Língua Estrangeira pela UFBA, além de irmão de Antônio Torres, da Academia Brasileira de Letras.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

AS SANDÁLIAS DO PESCADOR, de MORRIS WEST, sob minhas lentes

 


Este livro de Morris West, australiano autor de vários bestsellers, como Os Fantoches de Deus e O Advogado do Diabo, com mais de 60 milhões de cópias vendidas, é resultado de longa pesquisa feita sobre a dinâmica do Vaticano, desde a morte ao conclave dos cardeais para escolha do novo pontífice. Mas não para por aí o empenho fictício do literato, ele se estende numa trama que arrisca a criação de uma personagem com características vanguardistas, para além de João XXIII que, certamente, exerceu influência sobre sua criação, dadas as reformas que iniciou na Igreja no breve intervalo de tempo de seu papado, que iniciou em 1958 e foi interrompido pela morte em 1963, data esta que coincide com a publicação deste livro de 264 páginas.

    O enredo de substituição do papa parte de um desejo extremo, o de resgatar o caráter “revolucionário” dos primeiros cristãos em  contraponto à, introspectiva e ausente no mundo, doutrina romana adotada pelo catolicismo naqueles idos. Duas lideranças da cúpula, o Camerlengo e o cardeal responsável pelo Santo Ofício, Rinaldo e Leone, intuem, levados a crer que por inspiração divina, que diante da apatia com consequentes perdas de fiéis por parte da Igreja, seria oportuna a presença de um pontífice que representasse algo ousado, fazendo-os lembrar até da rebeldia de um São Francisco de Assis. Apresentara-se, perante esta exigência, um padre recém elevado ao posto de cardeal, Kiril Lakota, que estivera 17 anos preso, condenado ao trabalho forçado na Sibéria, sob o poder de Kamenev, algoz na prisão e agora, chefe de estado da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Esta proximidade de opostos, amparada pelas sinceras convicções de fé cristã e do ateísmo comunista em busca de um objetivo comum, a libertação do homem, preparou o terreno para a consolidação de uma amizade atípica, estimulada pela ação do algoz, que burla a burocracia para por em liberdade o prisioneiro. Ambos chegam ao topo das hierarquias, um no estado soviético o outro no do Vaticano e o que podemos ver a partir de então, é um jogo de estratégias humanistas entre um ateu e um cristão na busca de uma só finalidade, a Paz.

    Registrado antes do principado do papa Paulo VI, o livro antecipa várias ações vanguardistas deste, de João Paulo I e de Francisco, deixando até a suspeita de que possam ter lido o livro, como por exemplo, no que se relaciona às decisões de Paulo VI de abertura da Igreja no Concílio Vaticano II e as fugidas de Francisco para se juntar às pessoas comuns na cidade, ou mesmo a declaração de impossibilidade de julgamento, pela igreja, dos homossexuais.

    As Sandálias do Pecador, alusão a Pedro, primeiro Papa, é um livro que fascina pelas reflexões em torno da fé, mostrando a fragilidade dos representantes das grandes instituições, sejam religiosas, sejam de Estado. O enredo, que tem sua maior parte dedicada ao ambiente interno do Vaticano, conta com dramas periféricos de pessoas atingidas pelas limitações impostas pelo Estado e pelas decisões religiosas.

    Por fim, o livro é de fácil digestão, como diria Oswald de Andrade, por ser escrito pela excelência de um mestre, no entanto, para mim, particularmente, que habito entre os mortais, a bola bate na trave quando obedece desencantadamente à realidade. A fé que se estabelece pela luta do sujeito, se mostra amarga, como o é na vida real e, como dizia Paulo Leminski, e sempre me reporto a este poema, “Podem ficar com a realidade/ esse baixo astral/ em que tudo entra pelo cano/ eu quero viver de verdade/ eu fico com o cinema americano”.

    Mas fica a deixa do autor ao oferecer a possibilidade de sofrer com a realidade pura, sem as promessas de transcendência, tendo que conviver com o desencanto da morte, mas colocando-se como senhor das próprias decisões, e a alternativa de sair do centro e pôr Deus, como balizador destas decisões e justificação de quaisquer resultados que, neste bojo, se entenderia como além das nossas capacidades de compreensão.

 

Ivan Marinho de Barros Filho

Professor, especialista em Economia da Cultura.

sábado, 11 de junho de 2022

SERÁ QUE FOI O 1984 QUE ACORDOU FELIPE NETO?

 

                                                                                                                          (Foto: Acervo Felipe Neto)


Acabo de ler 1984, de George Orwell, autor do também clássico, Revolução dos Bichos. Edição da Livrarias Família Cristã, tradução da Souza e Cruz Traduções, com 357 páginas onde podemos nos encantar com a habilidade criativa do autor e nos angustiar com a similaridade profética escrita em 1948 e, parcialmente, vivenciada nos dias de hoje pelos seguidores das Fake News no Brasil das ilusões.

     O livro, que parece ter uma tradução apressada, incorrendo em uso, amiúde, de termos mal escolhidos e palavras suprimidas, como na frase “...entrasse em contato COM rapidamente” (pág. 134) ou “...deixar que cuidasse DIA”(PÁG. 153) Ou ainda um “Estou interessADO em nós”(pág. 184), quando a fala era de uma mulher, “...enviarei um livro com o qual vocês aprendeRAM...”(pág. 205), quando conjuga no passado o que seria futuro, mais acertado com a terminação ÃO e,  ainda mais indigesta quando escreve “...pingava no PEITO do macacão”(pág. 274), sem o cuidado e a paciência para encontrar a palavra BOLSO, lembra as tramas kafkianas, com um personagem que vive num labirinto que não tem entrada, nem saída.

     Fundado sobre uma distopia onde o condicionamento de massa se eleva ao total controle social, 1984 apresenta uma sociedade doentia, sem passado histórico e, por isto mesmo, sem qualquer expectativa de futuro. Com, basicamente, três classes: a de dirigentes, de pessoas comuns e a do proletariado, a macrorregião da Oceania coexiste com mais duas macrorregiões intercontinentais, a Eurásia e a Lestásia, que se autogerem sem deixar indícios de relações entre elas, a não ser de uma guerra estratégica, que tem por único objetivo manter o sentimento de ódio e de medo.



     Orwell profetiza em seu enredo, a total perda de privacidade a partir da instalação disseminada de câmeras – chamadas teletelas – por todos os lugares, monitoradas pela Polícia do Pensamento, especializada em fazer leituras de expressões que demonstrem qualquer inclinação crítica por parte dos indivíduos. Para garantir a imobilidade social, o poder, exercido aparentemente pelo Big Brother, o Grande Irmão, um personagem sem face, transmitido por redes eletrônicas, onipresente através das teletelas, é mitificado pela população como se fosse o garantidor da segurança e da estabilidade. Winston Smith, protagonista da ficção, acordado pela realidade e na condição de pessoa comum, trabalha como funcionário público no Ministério da Verdade, responsável pelas notícias, entretenimento, educação e cultura, onde se falsificam documentos e demais escritos que sirvam de referência ao passado, adequando os conteúdos aos interesses do Big Brother. Para facilitar a afirmação da mentira como se fosse verdade, especialistas desenvolvem um novo dicionário que reduz o espectro do significado das palavras, chamado de Novilíngua. O objetivo da Novilíngua é reduzir o campo de interpretação da realidade, transformando a linguagem numa ferramenta eminentemente pragmática para funções de trabalho, incapaz de aprofundar qualquer raciocínio mais subjetivo, ou seja, uma linguagem acrítica. A Oceania conta ainda com mais três Ministérios: o Ministério da Paz, que trata das guerras; o Ministério da Fartura/Riqueza, responsável pela economia e pela fome, que através da manipulação dos dados da produção condiciona as pessoas a imaginarem que tudo está sob controle e bonança e o Ministério do Amor, que se responsabiliza pela legitimação das sentenças e punições, excluindo a lei e julgando a partir de uma verdade absoluta que se justifica como implícita à condição humana, portanto impassível de questionamentos.

     O drama se dá pelo despertar crítico de Winston que, vendo-se enganado pelo sistema político-social, envereda na transgressão de todos os valores impostos pela socing (arcabouço ideológico da Oceania), valendo-se de sua perspicácia para driblar os mecanismos de vigilância. Intui, ainda no começo do livro, que um funcionário do primeiro escalão, O’Brian, é também um subversivo e, quando se vê convencido de que tudo não passa de manipulação, apresenta-se a O’Brian com sua namorada clandestina, com a intenção de militar na suposta organização conspiratória contra o Grande Irmão.

     Mas paremos por aqui. Vale muito a pena ler o livro. O desfecho é surpreendentemente frustrante, mas 1984, como o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, Matrix, Truman..., é um alerta para a realidade que se apresenta com a intervenção transversal da política, justiça e comunicação que destituiu uma presidenta sem crime, que aprisionou e alijou de uma disputa eleitoral um candidato sem crime, que elegeu, a partir de iniciativas midiáticas que induziram ao pânico moral, um político imoral... e que, aventado por um dos patetas que assumiram o Ministério da Educação nesta gestão fraudulenta, o Ricardo Vélez, se intencionou modificar o conteúdo dos livros didáticos para que a truculenta, assassina, desumana e corrupta ditadura militar de 1964 fosse vislumbrada pelos estudantes como uma ação exemplar.

     Nos últimos tempos aqui no Brasil, fomos surpreendidos por uma legião de autômatos, zumbis mesmo, capitaneados por um lunático oportunista chamado Olavo de Carvalho, e representados por um aparentemente psicopata chamado Jair, replicando mentiras e teorias conspiratórias e inundando as redes sociais eletrônicas (que virou palanque e luz para imbecis, como pensou Umberto Eco), de irrealidades e desinformações.

     A emersão do jovem comunicador Felipe Neto, da caverna de Platão, onde as sombras demoníacas de um PT criado pela Rede Globo impunham o ódio descabido à organização do povo trabalhador, para a luz do olhar livre, crítico, autônomo, é a prova de que ainda nos resta maleabilidade filosófica para a transformação social. Seu testemunho de mudança de ponto de vista e sua foto com o livro 1984 de George Orwell me convidaram a opinar sobre a obra.

Ivan Marinho de Barros Filho

 

terça-feira, 23 de abril de 2019

SÃO JOÃO SOB O OLHAR DOS SOBRADOS E DOS MOCAMBOS

                                                                                              Foto de Gabriel Marinho


                Acabo de ler o livro Noites Festivas de Junho – Histórias e representações do São João no Recife (1910 – 1970) -, 272 páginas do historiador Mário Ribeiro dos Santos, publicado com o incentivo do FUNCULTURA. O autor é doutor em história pela UFPE e é professor na Universidade de Pernambuco; Publicou Trombones, tambores, repiques e ganzás: A Festa das agremiações carnavalescas nas ruas do Recife (1930 – 1945); organizou o livro Quadrilhas Juninas: Continuidades e (des)continuidades nos caminhos da festa e mais dois livros intitulados Nos Arrais da Mamória: As quadrilhas juninas descrevem diferentes histórias, o segundo em parceria com o historiador Carlos André Silva de Moura.
                O livro, apesar da densidade própria da historiografia, traz em seu léxico a leveza de uma escrita fluente, fruto, para além dos títulos acadêmicos, da pena de um escritor. Dividido em quatro capítulos, Noites Festivas de Junho inicia sua viagem no tempo explorando as pesquisas de três letrados, como Ribeiro qualifica os folcloristas e memorialistas Mello Moraes Filho, Pereira da Costa e Mário Sette. Nos três observa o saudosismo e a busca abstrata e irreal da unidade essencial e identitária dos festejos pretéritos, caracterizados pela pureza, ingenuidade e sociabilidade.
                Segue analisando os noticiários da imprensa, que se divide entre a afirmação das tradições pernante a classe trabalhadora e o revisioniosmo colonialista das elites frente as influências estrangeiras e os conceitos de moderno e urbano, com as ruas induzidas a caricaturar as heranças do interior, dos matutos e os clubes vestindo a rigor uma elite com complexo de vira-latas embalada pelas Jazz Bands. Como, com pertinência, nos antecipa no prefácio o Prof. Dr. Flávio Weistein Teixeira “desde o investimento do Estado Novo (leia-se Agamenon Magalhães) em modalidade de festa que procurava dar relevo às apresentações de uma identidade coletiva destituída de conflitos..., a ser reforçada sobretudo entre os trabalhadores e extratos subalternos...”atendendo a objetivos políticos dirigidos por um ponto de vista utópico de que os agentes sociais são passíveis de acomodação a condições preconcebidas como humanitárias.
                Num paralelo histórico que se reinventa a partir da concepção estadonovista, a ditadura militar iniciada em 1964, acrescenta o sentido de valor simbólico, atrelando a cultura ao turismo, exaltando e embalando com papel de presente as expressões consolidadas nos mais distantes rincões, como algo exótico, característico da identidade nacional e, por isso, objeto de atração e venda para visitantes internacionais, sem deixar de revelar vozes que se levantaram contra a espetacularização do fazer comum dos pobres, reduzindo-o a produto comercial.
                O livro Noites Festivas de Junho – Histórias e Representações do São João em Reci (1910 – 1970) apresenta os festejos joaninos para além do equivocado olhar unilateral e previsível, aponta com maestria para realidades condicionadas por diversas intencionalidades, relevando um panorama muito caleidoscópico do que monocular.

Ivan Marinho de Barros Filho
Professor, especialista em Economia da Cultura, escritor e artista plástico.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

CHE GUEVARA FORA DE ÉPOCA

                                                                                                   Foto: Gabriel Marinho


                Acabo de ler um livro da Biblioteca Época – Personagens que marcaram época. O que mais me surpreendeu no começo da leitura foi ver o tamanho entusiasmo com que a editora Globo apresentava a face revolucionária e humana de Ernesto Guevara de la Serna. E o livro, extremamente sintético, dá pinceladas na infância, na juventude e no período de engajamento revolucionário do comandante e lança, já no início, uma passagem comovente de tão expressiva, que convida o leitor a lê-lo de um só fôlego, visto que se trata de uma brochura de 111 páginas, com sete capítulos. Marilene Cohen abre estas páginas contando sobre a comemoração do aniversário de 24 anos de Fuser, derivado de Furibumdo Serna, apelido dado por seu companheiro de viagem, no dia 14 de junho de 1952, de um lado do Rio Amazonas, quando enfermeiras, médicos, cozinheiras e funcionários organizaram a festa... Depois de ensaiar uns passos de mambo e fazer um discurso que declarava ilusórias as fronteiras que separavam as nações latino-americanas, ao sair pra tomar um sereno às margens do rio, percebeu que não vinha luz das cabanas dos leprosos na outra margem e, ali, a autora imagina uma pergunta na cabeça de Guevara: “De qual lado do rio passará a vida?” Diante da negativa do barqueiro em transportá-lo para o outro lado, não hesita, salta no rio a despeito da correnteza e da asma e atravessa a nado, sendo aplaudido de ambas as marges.
            O desconforto de Ernesto Guevara de la Serna era saber que a América Latina era uma só América, rica em história e oprimida pelos interesses do império estadosunidense.
            Confessou, mais tarde, que um dos maiores acontecimentos de sua vida fora conhecer o comandante Fidel Castro, por sua capacidade de compreensão, coragem e audácia.
            O livro expõe o Che como uma personalidade mítica, cultivada por pais rebeldes que enfrentaram Franco e Peron, sendo sua mãe presa pelo regime do primeiro.
            Na sua luta contra a asma e as forças do regime tirano do ditador Fulgêncio Batista, Che consegue, com o comando de Fidel, vencer o segundo.
            Nos governos de Urrutia e Dorticós, antecessores de Fidel Castro, Ernesto Guevara assume vários cargos no primeiro escalão da ilha, mas não deixa de praticar o trabalho voluntário no corte da cana, no plantio, etc.. Viaja vários países do mundo representando diplomaticamente a revolução cubana e não tarda por se decepcionar, segundo a autora, com os descaminhos do socialismo no bloco soviético. É aqui que a editora Globo diz a que veio: Tenta dar um contorno eminentemente romântico à postura do revolucionário e até a insinuar que, depois de uma reunião de portas fechadas com Fidel e Dorticós, Che tenha sido jogado para a morte na Bolívia. Isto por causa de um discurso de Guevara na Conferência Afro-Asiática de Solidariedade, onde critica o acordo entre a URSS e o USA, onde a primeira não implantaria mísseis em Cuba e o segundo (o singular é proposital), retirariam os seus da Turquia.
            No final, com sutileza, como na citação anterior, Marlene Cohen, a serviço da editora Globo, lança mais um veneno: Põe na boca de Alberto Dias Korda, fotógrafo do retrato antológico de Che, a interpretação que ali seu olhar é vago, perdido, difuso, quando o fotógrafo diz que “no olhar de Che estava pintado, escrito todo seu caráter e que é mais que um sonho, é a luta de um ser humano pelas coisas que acreditou até o final da vida”. Já esta verdade foi escrita no livro, mas em castelhano, pois nada tinha de vago ou perdido... Tinha de determinado, altivo, profundo.
            Contudo, com olhar crítico, é válida a leitura, sem comprar o livro, é claro, pedindo emprestado, aconselho!

Ivan Marinho de Barros Filho
Professor, Especialista em Economia da Cultura, escritor e artista plástico.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

AUTO DA COMPADECIDA, um auto de classes



                O Auto da Compadecida, publicado pela Editora Nova Fronteira em sua 36ª edição, é um livro com 187 páginas, que já chama a atenção por sua capa e ilustrações de Romero de Andrade Lima e letras características criadas pelo próprio Ariano Suassuna, como expressão do Movimento Armorial, também sua criatura.
                A abertura do livro já trás expostas as fontes inspiradoras, como os versos de Leonardo Mota no cordel O Castigo da Soberba, os do Enterro do Cachorro (Fragmento de O Dinheiro) de Leandro Gomes de Barros e do anônimo História do Cavalo que Defecava Dinheiro. Esta precaução me faz lembras as aulas-espetáculo do mestre Suassuna que, para não causar surpresa, já se apresentava como gago.
                Bráulio Tavares, posfaciador do livro, se remete a influência dos mecanismos narrativos da Comédia Medieval e Renascentista da Europa e da Comédia Popular do Nordeste na obra de Ariano, onde por fidelidade e tradição “o autor não julga que escreve por si só, mas com a colaboração implícita de uma comunidade inteira”.
                O livro é uma peça teatral escrita em três atos, intermediados pela presença de um palhaço. No primeiro trata-se do enterro do cachorro, no segundo do gato que descomia dinheiro, da chegada do cangaceiro Severino de Aracaju, da distribuição da herança do cachorro e das mortes dos personagens. O terceiro, do julgamento com o Diabo acusando, Nossa Senhora Compadecida defendendo e Jesus julgando.
                A história se passa na cidade de Taperoá na Paraíba e conta as presepadas de um matuto, João Grilo que, acompanhado de uma espécie de fiel escudeiro, reescrevendo o palhaço esperto e o besta, usa de seu ardil para aliviar a luta pela sobrevivência. Espécie de Macunaíma, João Grilo joga com os poderes econômicos e eclesiásticos para angariar alguma vantagem para si e para seu amigo, ganhando, por sua habilidade, o reconhecimento de representante de todos perante o julgamento da Divina Corte.
                O substrato filosófico do livro passa pelos questionamentos dos valores cívicos e religiosos que sustentam a ordem capitalista, incorporada pelo catolicismo. Para isto, faz de Maria a advogada do povo sofrido e marcado pela desigualdade social no nordeste brasileiro, nos fazendo lembrar da letra de Não Existe Pecado ao Sul do Equador, de Chico Buarque, ou mesmo do Cristo quando redime os pobres ao dizer, “Eles não sabem o que fazem!”.
                Esteticamente, apesar de ser uma comédia, faz rir e chorar. O choro nasce da comoção frente a miséria e pela justiça do olhar divino que não deixa de considerar as condições desumanas vividas pelo povo por causa do egoísmo das elites históricas do Brasil.
                O livro é bom de rir, quero dizer, de ler. Obra ovacionada no Brasil e no mundo, traduzida para vários idiomas e montada cenicamente na Alemanha, Grécia, Holanda, Israel, Polônia, Estados Unidos, Espanha, Finlândia, Portugal, Suíça e República Checa, isto dos idos de 2005 pra trás.
                Por tudo isto, Viva Ariano Suassuna! Viva o povo brasileiro!

Ivan Marinho de Barros Filho
Professor, especialista em Economia da Cultura, Artista plástico e Poeta.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

CUBA e FIDEL, no livro A ILHA, de Fernando de Morais

                                                                                               Foto de Gabriel Marinho

A ILHA (Um repórter brasileiro no país de Fidel Castro), republicado em sua 29ª edição em 1989, pela Editora Alfa-ômega, com 176 páginas, é fruto de uma visita “investigativa” do mais renomado biógrafo brasileiro, Fernando Moraes, a Cuba, 17 anos após a independência daquele país do julgo imperialista dos Estados Unidos da América.
                O jornalista, detentor do Prêmio Esso de Reportagem, não se satisfez em recolher dados estatísticos ou de arquivos gerais, nem tão somente o ponto de vista oficial de representantes do poder, buscou impressões das pessoas comuns, como estudantes, agricultores, taxistas..., constatando na diversidade a presença conceitual de um valor onipresente, o da dignidade e humana. Disserta sobre o cotidiano, sobre a cultura, a urbanidade e a ruralidade, a educação, a saúde, a comunicação, a mulher, as eleições, a justiça, a reforma agrária, a economia, em fim, a revolução a cada dia, sintetizada, na abertura do livro, num poema de Agostinho Neto, do livro Poemas de Angola, que diz:

Mantivemo-nos firmes: no povo
Buscáramos a força
E a razão.

Inexoravelmente
Como uma onda que ninguém trava
Vencemos.
O povo tomou a direção da barca.
Mas a lição lá está, foi aprendida:
Não basta que seja pura e justa
A nossa causa.
É necessário que a pureza e a justiça
Existam dentro de nós.

                O repórter, que esperou sessenta dias entre o quarto do hotel e as estâncias diversas da ilha, aguardando o encontro com Fidel Castro, confessou ter muitas surpresas com a Cuba real, entre elas a da generalidade de homens sem barba, cultivada pelo sinal de respeito aos que se destacaram e distinguiram pela luta corporal nas guerrilhas. Surpreendeu-se também com a ausência de policiamento nas ruas, justificada posteriormente pela existência dos Comitês de Defesa da Revolução, o CDR, presente em cada quadra, em cada rua e representado por moradores. Desvendava-se-lhe que a revolução em Cuba não era um marco de tomada do poder, mas o processo cotidiano de transformação política, econômica e social e Fidel, a grande liderança que, desde o período da luta armada, discursava para todos, aliados e adversários, num processo de educação e reeducação conceitual que substituía a paisagem individual pela coletiva e os fins pelos meios, numa construção constante, permeada pela humanização e justiça.
                Sempre que Morais sondava contradições, vícios capitalistas, ouvia do cidadão ou cidadã comum: Isto era na Cuba pré-revolucionária! Assim foi com relação a dois temas recorrentes, a prostituição e a droga.
                Mas é nas relações internacionais que se demonstra a percepção diferenciada do olhar revolucionário. Fernando Morais, como se tentasse encontrar algo que se assemelhasse à realidade condicionada e condicionadora da visão competitiva, testa o posicionamento de Fidel com medidas de troca, numa espécie de câmbio político, como por exemplo, qual concessão faria Cuba perante o desbloqueio parcial por parte dos EUA? Ao quê o comandante repudiava  argumentando que, sendo o bloqueio uma injustiça, não se justificava em sua integridade, não havendo espaço para negociações parciais. Ainda mais profundamente, ele responde à indagação sobre se tiraria suas tropas de Angola se acaso os EUA encerrassem o bloqueio econômico, dizendo que, sendo o apoio para libertação de Angola uma ação de justiça, não havia como transformá-lo em moeda de troca para atender interesses exclusivamente cubanos.
                A linguagem do livro, com fluência e economia, fazendo jus a atividade de um jornalista, torna-se ainda mais convidativa pela busca tácita de significância. Não pretende apenas mostrar, mas testemunhar, convencido que se fez perante o sacerdócio revolucionário do comandante Fidel Castro.

Ivan Marinho de Barros Filho é especialista em Economia da Cultura, artista plástico e poeta.